2010/09/30

“ NAVIGARE NECESSE; VIVERE NON EST NECESSE" - (Plutarco)


O navio "Fernando Pessoa" deixando o Porto,
pois existir requer partir
e partir é da natureza lusa...
saudade uma exclusividade.

Não existem voltas, só idas.

Em uma Terra que, por hábito, muito se olha para trás,
satisfaço minha natureza e parto olhando para frente
- com a inevitável saudade já instalada.
(Que dias há que n'alma me tem posto um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê - Camões) .

"barco, meu coração não agüenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não

Navegar é preciso
Viver não é preciso

O barco, noite no céu tão bonito
Sorriso solto, perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco da madrugada
O porto, nada

Navegar é preciso
Viver não é preciso

O barco, o automóvel brilhante
O trilho solto, o barulho
Do meu dente em tua veia
O sangue, o charco, barulho lento
O porto, silêncio

Navegar é preciso
Viver não é preciso"
                                             - Caetano Velloso

2010/09/27

" DOBRADA À MODA DO PORTO"

Dando seqüencia ao redescobrimento de Portugal, segue o uso do poeta para transcrever o que há em meu coração:

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

 Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
                                                            Alvaro de Campos (F.P.)

2010/09/23

"PARA VIAJAR BASTA EXISTIR”

Eu existo e estou a partir,
a partir deste castelo para alem mar.
Eu existo e estou a partir,
embriagado por Fernando Pessoa e seus múltiplos.
Eu existo e estou a partir,
desancorado à caminho do Porto...
que já foi de partida para a gênese deste gajo.

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes —
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro.
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar a mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;
Hei-de vê-la levar de aqui,
Hei-de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.
                                                            Alvaro de Campos (F.P.)

2010/09/03

A FADIGA RESULTANTE DO EXISTIR

Então ele olhou para Deus (manifestado, ali, naquela figura no espelho) e, largando-se na fadiga resultante do existir, confidenciou: “Sinto muito, não deu certo”.
Eu acredito na reencarnação - novo assunto midiático – não numa maneira religiosa, mas sim como algo que fornece sentido.
Isso me dá um alento enorme, pois, sendo assim, não há urgência da perfeição imediata, da existência assertiva plena.
É astuto viver cada existência de forma mais assertiva que a anterior – evoluir -, porem, a existência é curta, extremamente curta para que a desperdicemos.
Há de se ter coragem e se auto olhar com a visão límpida - sem o embaço dos valores doutros - e analisar o Ser que se é.
Na “igreja de todos os bêbados” ** nossos piores odores são conhecidos só por nós, nossos podres interiores são segredos apenas a nós confiados, aos outros é civilizado expor o nosso melhor.
O que dá sentido à vida é ela ter um sentido.
Na medicina há uma doença denominada LER (Lesão por Esforço Repetitivo), que invalida as pessoas para a vida profissional.
A sociedade moderna está, sem ninguém se dar conta, fazendo-nos adquirir outro tipo de LER: a “Lesão por Existência Repetitiva”, que nos invalida para uma vida que valha a pena ser vivida, nos oferece uma existência sem sentido.
Citando Anah Zohar: "Somos dotados de existência temporária e de propósitos fúteis".
               ** "O banheiro é a igreja de todos os bêbados" - Cazuza

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas.
Essas e o que faz falta nelas eternamente.
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser…

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo, Cansaço…

Alvaro de Campos (F.P.)